O ABALROAMENTO DO USS PORTER

 CMG(RM1) Carlos Norberto Stumpf Bento


(Artigo publicado na Revista de Villegagnon 2014)

 

O preço da segurança é a eterna vigilância
(frase padrão impressa próximo à assinatura do livro
de
Ordens Noturnas do Comandante do USS Porter)

  

Em 12 de agosto de 2012, sete meses após o emblemático acidente com o Navio de Passageiros Costa Concordia, que colidiu com o fundo em uma ilha ao largo da costa italiana, o Contratorpedeiro (CT) USS Porter envolveu-se em um abalroamento[1] com um Navio Tanque (NT) próximo ao Estreito de Ormuz no Golfo Pérsico.

Ao analisar os dois acidentes, percebe-se que ambos são exemplos claros de que os conceitos de e-navigation e de Gerenciamento das Equipes do passadiço (BTM - Bridge Team Management), não tem sido adequadamente aplicados na navegação aquaviária. O conceito de e-navigation foca na integração de ferramentas de navegação existentes, em particular as eletrônicas, em um sistema abrangente que  contribuirá para aprimorar a segurança da navegação. Já o conceito de BTM, que já existe há muitos anos, visa à integração de todo o pessoal que guarnece os passadiços das mais diversas embarcações, sendo fundamentado em técnicas de organização, liderança e trabalho em equipe.

  

1 . SEQUÊNCIA DE EVENTOS.

O livro Navegação Integrada, em referência, aborda a importância do navegante saber como e quando utilizar as modernas ferramentas de navegação atualmente disponíveis, as quais o auxiliam na condução de de sua embarcação por águas seguras e no acompanhamento adequado do tráfego de embarcações, contribuindo significativamente para evitar colisões com o fundo e abalroamentos, respectivamente. Ademais, ressalta a importância do gerenciamento das equipes de passadiço.

Em seu capítulo 4, onde são analisadas as principais causas de ocorrência de acidentes aquaviários, a saber: fatores ambientais; explosão ou incêndio a bordo; colisão com o fundo; e abalroamentos, é constatado que as duas últimas causas geralmente estão associadas à não aplicação dos conceitos mencionados, como foi o caso do Costa Concordia, que concorreram para a sua colisão com o fundo.

O presente artigo pretende evidenciar as falhas na aplicação desses conceitos no episódio envolvendo o USS Porter, que culminaram no seu abalroamento por um Navio Tanque.

Apesar de não ter o intuito de provar a ocorrência de falhas ou fazer qualquer tipo de julgamento dos envolvidos no acidente, é importante colher alguns ensinamentos daquele episódio por meio de suposições, informações extraoficiais disponível na Internet e pela análise do áudio do passadiço obtido do VDR[2] do CT  e de dados AIS (Sistema de Identificação Automático – Automatic Identification System) disponíveis na Internet.  

Figura 1

O USS Porter possivelmente evitava trafegar próximo ao mar territorial iraniano, região de grande tensão, onde há 3 anos um navio anfíbio foi abalroado por um submarino nuclear, ambos estadunidenses, e onde já houve incidentes envolvendo embarcações iranianas, minas e até o abate de um Air Bus em 1988.

O navio saia da faixa de tráfego norte de um Esquema de Separação de Tráfego (TSS – Traffic Separation Scheme) e demandava a rota mais ao sul, contrária ao fluxo de navios que demandavam a faixa de tráfego sul do TSS, assumindo o rumo 2300 com velocidade desconhecida (figura 1). A Equipe do passadiço era composta pelo Comandante, pelo Oficial de Quarto, pelo Oficial de Manobra e pelo Timoneiro, além da equipe de navegação[3].


 

[1] Abalroamento ou Abalroação - choque mecânico entre embarcações ou seus pertences e acessórios (NORMAM-09/DPC). Antigamente significava um choque intencional, já que os balros eram instrumentos ou aparelhos formados  por um cabo amarrado a uma balroa (gancho, fateixa ou garatéia), utilizados para abordar uma embarcação inimiga e mantê-la a acostada durante o combate (Nota do autor).
[2] VDR - Gravador de dados de viagem (Voyage Data Recorder).

 


O Comandante havia se ausentado do passadiço visando resolver alguns afazeres não  relacionados com a navegação.

Os Oficiais no passadiço então se deparam com a luz de bombordo do Navio Tanque (NT) Shat Al Alab pela sua bochecha de bombordo (figura 2)[4], com velocidade de 10,5 nós.



Figura 2

 

Como o contratorpedeiro aproxima-se muito do NT, o Oficial de manobra determina aumentar a velocidade para “toda força adiante” visando safar logo a popa do mercante, já tendo em mente guinar em seguida, acentuadamente para bombordo, reassumindo o rumo base 230o. (Não se sabe se o CT guinou um pouco para boreste a fim de evitar uma maior aproximação com o NT).

Provavelmente, devido à situação de perigo gerada, o Comandante é chamado ao passadiço. Ao chegar ao compartimento e constatar ruído excessivo, ele determina “Silêncio no passadiço!”. Desse evento em diante, a gravação do áudio do passadiço é disponibilizada de acordo com a Lei sobre Liberdade de Informação (Freedom of Information Act) dos EUA.

Nesse momento, outro Navio Tanque, o NT Otowasan (totalmente carregado), a uma distância aproximada de 5 milhas náuticas pela proa e a uma velocidade de 14 nós, percebia o USS Porter em uma situação "roda a roda" e iniciava uma guinada para boreste (figura 3), prevista no RIPEAM[5], visando passar “bombordo com bombordo” com o CT, sem saber das intenções desse de guinar para bombordo.

 



Figura 3

 

O Comandante do Porter, também desconhecendo as intenções do Oficial de Manobra e a situação em relação do Otowasan, determina ao Oficial de Quarto “leme a meio”. O comando de leme é passado para o Oficial de Manobra, quando este já estava comandando ao Timoneiro “todo leme a bombordo”. O Comandante questiona o porque da manobra e a intensidade da guinada já que o NT Shat Al Alab já havia passado. O Oficial de Quarto responde que estava se livrando da popa do NT e reassumindo o rumo base 2300. Em seguida o Oficial de Manobra determina ao Timoneiro “governar no rumo 2300”, e o Timoneiro atende. O Oficial de Quarto comenta “OK. Vamos voltar ao nosso rumo base”. O Comandante diz que não importa o rumo base, mas sim fazer com que o navio cruze o tráfego.

O Oficial de Quarto determina então ao Timoneiro “leme a meio” (sem rumos a seguir) e informa ao Comandante que tem outro Navio Mercante pela bochecha de boreste. O Timoneiro informa que a proa já está em 2100. Nesse momento o Oficial de Manobra participa ao Comandante que está avistando uma luz encarnada e solicita autorização para guinar para “boreste 2500” para passar bombordo com bombordo com o NT.

Nessa fase crítica (figura 4) o Comandante pergunta “passar quem?”, o que o Oficial de Quarto responde “esse cara bem aqui!”. Em seguida o Comandante questiona por que haviam aumentado a velocidade para “toda a força”, e o Oficial de Quarto responde que também era para ajudar a se livrar da popa do Shat Al Alab, determinando reduzir a velocidade para 5 nós.



Figura 4

O RELATÓRIO FINAL DO ACIDENTE EVIDENCIOU QUE O USS PORTER CRUZOU
 A PROA  DO NT SHAT AL ALAB ( FIGURA ACIMA),
AO CONTRÁRIO DO DEDUZIDO ANTERIORMENTE POR ESTE AUTOR (FIGURA 4)

 

Como provavelmente o CT estava navegando em formatura, seguem-se diálogos sobre a necessidade de informar a situação a outro navio, possivelmente o navio do OCT (Oficial de Comando Tático) ou simplesmente outro navio que fazia parte do seu Grupo-Tarefa.

O Timoneiro informa que está com a proa em 2300.

O Comandante começa a orientar o Oficial de Quarto para não usar novamente a máxima velocidade, pois entende que não é daquela forma que se diminui o problema. O Oficial de Quarto dá o ciente mas avalia que o NT está com aspecto de bombordo e que é necessário agir com rapidez.

O Comandante avalia a situação e determina em sequência: “todo o leme a bombordo (20 graus)”; “todo o leme a bombordo em emergência (30 graus)”; e soar 5 apitos curtos[6].

 O Timoneiro informa que está com a proa em 1800 e, quando o Oficial de Manobra verifica que está em 1700, este sugere ao Comandante continuar nesta proa. O Comandante concorda e o Oficial de Quarto determina ao Timoneiro seguir o rumo 1700. Imediatamente o Comandante visualiza uma situação que o faz gritar “máquinas adiante toda a força em emergência e soar novamente 5 apitos curtos!”. Em seguida determina ao Timoneiro “todo o leme a bombordo”, quando há o choque (figura 5) e são ouvidos, no passadiço, gritos (de desconhecidos): “segurem-se! Preparar para a colisão! Meu Deus! Você está bem? Soar o alarme de colisão!”

 



Figura 5

 

O Oficial de Quarto pergunta ao Contra-Mestre se todo mundo está bem. O Comandante determina parar máquinas e o Oficial de Quarto manda tocar Postos de Combate.    

Provavelmente, devido à grande inércia do NT, principalmente por estar navegando carregado, não houve redução significativa de velocidade. O NT atingiu, com a parte em ângulo de sua roda de proa, o CT na altura do convés do CIWS [7].

A grande diferença de calado entre os dois navios evitou que o bulbo de proa do NT atingisse as obras vivas do Porter, o que poderia ter conseqüências mais sérias (figura 6). O acidente não teve vítimas em nenhum dos navios envolvidos.



Figura 6


[3] Na U.S. Navy o Oficial de Quarto (OOD – Officer Of the Deck) é um Oficial que supervisiona o serviço do Oficial de Manobra (CONN – Conning Officer), que geralmente é o mais inexperiente.

[4] As figuras de 1 a 4 foram elaboradas com base em informações do AIS (Sistema de Identificação Automático) no dia 11/08/2012, outrora disponíveis em http://www.shipfinder.co. Os números que acompanham as posições dos navios envolvidos  representam o minuto aproximado das mesmas. As posições do USS Porter foram deduzidas em virtude do mesmo, por ser um navio de guerra, operar  o AIS em passivo.

[5] RIPEAM – Regulamento Internacional para Evitar Abalroamento no Mar.


 

2. E-NAVIGATION

 

O relatório final do acidente com o Costa Concordia ressalta que o navio não dispunha de carta de grande escala da ilha exibindo a pedra com a qual o navio colidiu. No livro Navegação Integrada é ressaltado que, no episódio com o Costa Concordia, o Comandante dispensou modernas ferramentas que poderiam ajudar a evitar a colisão com o fundo. Apesar de só ser obrigatório o uso de um ECDIS (Sistema de Exibição de Cartas Eletrônicas - Electronic Chart Display System) por aquele tipo de navio a partir de 2014, tal equipamento já existia a bordo e havia pessoal qualificado na sua operação. Essa ferramenta de navegação (capitulo 4 do livro), que permite integrar todas as ferramentas de navegação do passadiço, possibilitaria exibir em detalhes a pedra; soar com a antecedência necessária alarmes em relação à aproximação daquele perigo; e até plotar a posição futura do navio a partir de dados de rumo, velocidade e ângulos de leme. Contudo, o seu uso foi negligenciado.

Da mesma forma, existiam a bordo do NT Otowasan e do USS Porter modernas ferramentas de acompanhamento automático de embarcações, tais como o Radar dotado de ARPA (Automatic Radar Plotting Aid – Auxilio de Plotagem Automática Radar) e o AIS (Automatic Information System – Sistema de Identificação Automático), baseado na transmissão de dados via VHF entre embarcações.

Possivelmente o Radar/ARPA do NT Otowasan disparou um alarme de COLISÃO (Threat – Ameaça) em relação ao USS Porter, que por possuir geometria furtiva (stealth) deve ter aparecido na tela radar do NT como uma pequena embarcação. Como navios de guerra não são obrigados a transmitir os sinais AIS, operando o mesmo em passivo, o NT pode ter inferido que o pequeno eco radar tratava-se de uma pequena embarcação sem AIS, ou mesmo de um navio de guerra caso o tenha observado com aspecto de estar fazendo parte de uma formatura naval. O desconhecimento das condições atmosféricas no local não permite garantir que o NT tenha avistado as luzes de bordo do CT antes de guinar para boreste.   

Já no USS Porter, pela análise do áudio do passadiço, não há nenhum indício de que alguém tenha percebido a guinada do NT ou que algum alarme de ameaça ou colisão tenha sido acionado pelo Radar/ARPA e/ou pelo AIS em relação a ele. E tais alarmes geralmente são configurados para serem emitidos de forma sonora, somente sendo interrompidos por ação do operador. O AIS também é capaz de exibir a derrota percorrida de qualquer alvo e até a derrota planejada, caso seja inserida no sistema. Além disso, tais belonaves possuem em seus CIC (Centros de Informação de Combate) sensores eletromagnéticos e acústicos incomparáveis na detecção de qualquer tipo de ameaça aérea, submarina ou de superfície.

 

Contratorpedeiro da Classe “Arleigh Burke

 

3 . GERENCIAMENTO DA EQUIPE DO PASSADIÇO

 Conforme é ressaltado no capítulo 4 do livro Navegação Integrada, um acidente raramente é fruto de um único evento, mas de uma série deles que formam uma cadeia de erros. Geralmente essa cadeia é formada por eventos do tipo: má configuração de equipamentos, confusão de identificação, erros de cálculo, informação mal interpretada ou por mal-entendidos, sendo agravada por um eventual despreparo do pessoal.

Somente aquele Oficial no passadiço que mantém permanentemente a "consciência situacional", ou seja, que sabe o que está ocorrendo a bordo e no entorno do navio, e está alerta para perceber sinais que indiquem uma tendência a criar uma cadeia de erros, pode tomar uma atitude para interrompê-la.

Muitas vezes a percepção de um desses sinais não indica necessariamente que um acidente está prestes a ocorrer, mas apenas que a navegação não está sendo conduzida adequadamente ou como planejado, podendo a "consciência situacional" ser degradada, comprometendo desnecessariamente a segurança da navegação. 

Geralmente existem alguns sinais que, caso não sejam percebidos e interrompidos, podem levar ao desenvolvimento de uma cadeia de erros. A tabela a seguir, constante do livro Navegação Integrada(adaptada da obra Team Bridge Management) mostra alguns exemplos de sinais típicos que podem contribuir indesejavelmente para essa situação.

 

SINAIS TÍPICOS DE DESENVOLVIMENTO DE UMA CADEIA DE ERROS 

Tipo de Erro

Exemplo de sinal

1. Ambiguidade

·   a) As posições simultâneas obtidas por dois métodos de navegação não são as mesmas.

·   b) A leitura do ecobatímetro em determinada posição não coincide com a profundidade constante da carta.

·   c) Dois membros da equipe discordam sobre a ação a tomar, sendo que pelo menos um deles pode ter perdido a "consciência situacional".

·   d) Adoção de procedimentos diferentes dos previstos em normas, regulamentos, recomendações, livros de ordens noturnas, etc.

·   e) Não exposição de algumas dúvidas importantes por parte do pessoal mais novo e inexperiente, com receio que isso possa ser interpretado como algum tipo de despreparo.

·   f) Dúvidas na identificação de luzes de navegação e de sinalização náutica.

 

 2 . Distração

·   a) Falta de atenção causada por carga de trabalho excessiva, stress ou fadiga.

·   b) Desvio de atenção para outro evento como, por exemplo, uma chamada VHF, principalmente se não estiver relacionada com a segurança da navegação.

 

3 . Confusão

·   Geralmente ocorre em situações complexas de perigo, mesmo com o pessoal muito mais experiente, e exige correção imediata para que a situação não fuja do controle.
 

 4 . Colapso de comunicação 

·      Quando um membro da equipe não entende perfeitamente o que um operador em terra, um Prático, ou outro membro da equipe quer dizer, quer seja por diferença de bagagem de conhecimento ou uso de idioma, expressões ou linguajares diferentes.
 

5 . Dúvida sobre quem está com a manobra

·   Quando o Oficial de Quarto e o Comandante estiverem no passadiço e não estiver claro com quem está a manobra, situação que pode ser agravada pela presença do Prático assessorando a manobra.
 

6 .Não cumprimento da derrota planejada

·   Quando, por qualquer motivo, a derrota planejada não estiver sendo seguida ou os horários previstos não estiverem sendo cumpridos.
 

7 .Não cumprimento de regras de navegação 

·   Quando, por qualquer motivo, uma regra de navegação estiver sendo violada.

 

 

·   Nos dois últimos casos, se a pergunta "Porque estou fazendo isso dessa forma?" não for facilmente respondida, será forte indício de perda de "consciência situacional".

 

 

No capítulo 4 do livro Navegação Integrada é feita uma uma análise do caso Costa Concordia à luz do Gerenciamento da Equipe do passadiço e conclui que erros dos tipos 1c), 1d), 2b), 6 e 7 formaram a cadeia de erros naquele episódio. O relatório final do acidente também aponta interpretações de ordens de leme erradas por parte do Timoneiro (erro 4) e a falta de empenho da equipe do passadiço por não ter sido suficientemente enfática em alertar o Comandante sobre a situação de perigo.

 Analisando o caso USS Porter, podemos também constatar os seguintes sinais que, por não terem sido interrompidos, formaram uma forte cadeia de erros que culminaram no abalroamento. 

 Erro 1c) – O Comandante discordou da manobra e da velocidade adotadas pelos Oficiais de serviço no passadiço, sem ter a “consciência situacional” em relação às intenções dos Oficiais, à velocidade do próprio navio, e à presença ameaçadora do NT Otowasan.

 Erro 1d) – O Comandante, como é recomendado em situações críticas, deveria ter assumido imediatamente a manobra e não apenas ter se limitado a interferir na manobra dos Oficiais de serviço no passadiço.

 Erro 1e) – Os Oficiais de serviço no passadiço não conseguiram passar rapidamente ao comandante as suas intenções de manobra e a situação em relação ao NT Otowasan, nem foram suficientemente enfáticos em suas percepções em relação à ameaça do NT. O BTM recomenda que se procure evitar que o risco de que o erro de um único indivíduo possa resultar em uma situação de catástrofe. Também recomenda deixar claro em que situações se deve “chamar o Comandante ao passadiço”.

 Erro 1f) – Ninguém no passadiço percebeu que o NT Otowasan já havia guinado para boreste bem antes de o comandante chegar ao passadiço, o que poderia ter sido facilmente constatado por meio da identificação de suas luzes de navegação, ou por meio do Radar/ARPA ou pelo AIS, que como já mencionado anteriormente possuem eficientes alarmes para tal propósito, caso adequadamente configurados.

 Erro 2a) – Não existe registro de carga de trabalho excessiva, stress ou fadiga por parte dos Oficiais, mas sempre deve-se levar em consideração que navegar à noite, possivelmente engajado em manobras militares, em uma região perigosa como o golfo pérsico pode facilmente contribuir para a incidência desses fatores negativos.

 Erro 2b) – Segundo divulgado na mídia, o Comandante havia se ausentado do passadiço a fim de despachar relatórios de rotina, uma tarefa não relacionada com a segurança da navegação. Ao sair do TSS[8], o Comandante deveria ter em mente que cruzaria intenso tráfego no sentido  contrário, evitando ausentar-se do passadiço, ainda mais navegando à noite e em formatura.

O Comandante não conseguiu recuperar a consciência situacional após seu regresso ao passadiço e desperdiçou um valioso tempo de reação ocupando-se, durante cerca de um minuto, em participar a redução de máquinas para o OCT e em advertir os Oficiais a respeito do uso das máquinas a toda força, procedimento que já poderia constar de suas ordens e recomendações. A página do seu livro de ordens noturnas para aquela noite estava em branco, mas a seguinte frase padrão estava impressa próxima à sua assinatura no livro: "O preço da segurança é a eterna vigilância”.
 

 Erro 3 – Quando o Comandante chegou ao passadiço havia um excesso de ruído no compartimento, demonstrando certa confusão, agravada pelo fato de ele não ter efetivamente assumido a manobra. 

 Erro 4 – É interessante constatar que,na primeira fala do Oficial de Manobra, ele comanda o bordo errado, corrigindo-o em seguida e, na última fala do Oficial de Quarto esse diz que o navio foi atingido por bombordo, quando na realidade o foi por boreste. Tal tipo de erro em relação aos bordos, caso não seja percebido a tempo e passado na forma de comando ao Timoneiro pode rapidamente gerar ou agravar uma situação de perigo.

 Erro 5 – Mesmo estando claro que a manobra sempre permaneceu com o Oficial de manobra, o fato de o Comandante não a ter assumido naquele momento crítico, fez com que suas recomendações tivessem que passar pelo Oficial de Quarto e Oficial de Manobra antes de chegarem ao Timoneiro. Da mesma forma, o Oficial de Quarto necessitava sugerir a manobra ao comandante e obter autorização antes de agir.  E uma situação dessas geralmente tende a se agravar em caso da presença do Prático no passadiço.

 Erro 7 – O USS Porter, ao contrário do NT Otwasan, não cumpriu o RIPEAM nem efetuou chamada VHF para combinar a manobra. Não se tem conhecimento se  o USS Porter navegava em CONSET (Condição de silêncio eletrônico).

 


[6] Regra 34 d) do RIPEAM - Quando várias embarcações à vista uma da outra se aproximarem, e por qualquer causa alguma delas não entender as ações ou intenções da outra, ou que tiver dúvida sobre se a outra estiver efetuando a manobra adequada para evitar a colisão, a embarcação em dúvida indicará imediatamente essa dúvida emitido pelo menos cinco apitos curtos e rápidos. Este sinal poderá ser complementado com um sinal luminoso e de, no mínimo, cinco lampejos curtos e rápidos.

[7] CIWS – Close-In Weapon System (Sistema Naval para Defesa de Ponto). Concebido para defesa contra mísseis antinavio e aeronaves de ataque a curta distância).

[8] As regras para navegar em um TSS (Esquema de Separação de Tráfego), constam do Capítulo 3 do livro Navegação Integrada.


 

4. CONCLUSÃO

 Podemos concluir que, se a ordem inicial do Comandante de manter o leme a meio tivesse sido dada a tempo não haveria a colisão. Da mesma forma, caso o Oficial de manobra mantivesse a velocidade máxima após a guinada, provavelmente cruzaria rapidamente a proa do NT. A perda da consciência situacional pelo Comandante; a sua interferência na manobra, sem efetivamente assumi-la; a redução drástica de velocidade, limitando a capacidade de manobra do navio; e a incapacidade da equipe do passadiço em perceber a guinada do NT e em participar ativamente das decisões do Comandante foram fatais.

A não utilização de modernas ferramentas de navegação e as diversas falhas no gerenciamento da equipe do passadiço do USS Porter criaram um paradoxo no qual um navio de guerra da Marinha mais poderosa do planeta, concebido para evitar as mais diversas ameaças, incluindo o ataque por mísseis supersônicos a curta distância, não foi capaz de evitar ser atingido por um grande e lento petroleiro. 

 


 

GRAVAÇÃO DO ÁUDIO DO passadiço DO USS PORTER

 Tradução: CC Marcus André e CT(USN) Charles Calhoun Todd

HORA LOCAL

QUEM

INGLÊS

QUEM

PORTUGUÊS

00:50:00

CO

Ok, quiet. Rudder amidships.

COMTE

Bom, quieto. Leme a meio.

 

OOD

Rudder amidships.

OF QUARTO

Leme a meio.

 

CONN

Right…Left full rudder

OF MANOBRA

Boreste …Todo leme a bombordo.

 

HELM

Left full rudder, aye.

Timoneiro

Todo leme a bombordo.

 

OOD

Left full rudder, let's go back to our main base course.

OF QUARTO

Todo leme a bombordo, vamos voltar ao nosso rumo principal base.

 

CO

What are you doing?

COMTE

O que voce está fazendo?

 

OOD

I was just getting the stern away, sir. Let's go back to our main base course. Rudder amidships.

OF QUARTO

Eu estava apenas safando a popa, Senhor. Vamos voltar ao nosso rumo principal base. Leme a meio.

 

CONN

Continue left steady on course 230.

OF MANOBRA

Continue a bombordo, governar no rumo 230.

 

HELM

Continue left steady on course 230, aye.

Timoneiro

Continue a bombordo, governar no rumo 230, ciente.

 

CO

Why did we make that course change like that?

COMTE

Por quê alteramos o rumo dessa forma?

 

OOD

Sir, I wanted... Sir, I was kicking the stern away in case the bow was getting close or in case their bow...

OF QUARTO

Senhor, eu queria… Senhor, eu estava chegando a popa para lá para caso a proa estivesse chegando perto ou caso a proa deles…

 

CO

Yeah but we already passed the guy.

COMTE

Ciente, mas nos já passamos o cara.

 

OOD

Aye, sir.

OF QUARTO

Ciente, Senhor.

 

CONN

Continue left steady on course 230.

OF MANOBRA

Continue a bombordo, governar no rumo 230.

 

HELM

Continue left steady on course 230 aye.

Timoneiro

Continue a bombordo, governar no rumo 230, ciente.

 

OOD

OK, let's get back on our base course.

OF QUARTO

Ok, vamos voltar ao nosso rumo base.

 

CO

Base course means nothing let's just get the ship through the stuff.

COMTE

Rumo base não quer dizer nada, vamos cruzar o tráfego.

 

OOD

Rudder amidships.

OF QUARTO

Leme a meio.

 

CONN

Rudder amidships.

OF MANOBRA

Leme a meio.

 

HELM

Rudder amidships, aye. My rudder's amidships no new course given.

Timoneiro

Leme a meio. Meu leme está a meio sem rumos a seguir.

 

CONN

Very well. Sir, request… [inaudible]

OF MANOBRA

Ciente. Senhor, solicito…

 

OOD

Alright sir, I have another merchant here on the bow on the starboard bow.

OF QUARTO

Bom, Senhor, eu tenho outro mercante aqui na proa à boreste.

 

HELM

Passing 210 to the left.

 

Passando 210 para bombordo.

 

CONN

Very well.

OF MANOBRA

Ciente.

00:51:00

OOD

I don't have a I have a port running light request to come to starboard to 250 to pass him down the starboard side sir.

OF QUARTO

Eu não tenho um… Eu tenho uma luz encarnada. Solicito vir para boreste para 250 para passá-lo por boreste, Senhor.

 

CO

Which guy?

COMTE

Passar quem?

 

OOD

This guy right here.

OF QUARTO

Esse cara bem aqui.

 

CO

Why don't we just go straight this way?

COMTE

Por quê nao vamos assim como estamos?

 

OOD

I have uh, aye sir... sir I would like to slow down.

OF QUARTO

Eu tenho, uhhh, ciente Senhor… Senhor, eu gostaria de reduzir máquinas.

 

CO

Alright uh... slow down. Slow down to 5 knots.

COMTE

Tá bom, uhhh… reduza máquinas. Reduza para 5 kts.

 

OOD

Alright slow to five!

OF QUARTO

Ciente, reduzir para 5.

 

CO

Why did we come up to flank?

COMTE

Por que você tinha aumentado para toda forca?

 

OOD

Because to pass his stern. Slow to 5.

OF QUARTO

Para poder passar a popa dele...Reduzir para 5.

 

HELM

All engines ahead 1/3 for 5 knots aye.

Timoneiro

Máquinas adiante 1/3 para 5 kts, ciente.

 

OOD

Slowing to five knots please pass to GUNSTON HALL.

OF QUARTO

Reduzindo para 5 kts, por favor informe GUNSTON HALL.

 

JOOD

OOD you want that passed over FLT TAC? Officer of the Deck?

AJ OFMAN

Oficial de Manobra, você quer que passe a informacão pela PMTA? Oficial de Manobra?!?!

 

CO

Yes pass it over FLT TAC!

COMTE

Afirmativo, passe pela PMTA.

 

HELM

Passing 2300 to the left.

Timoneiro

Passando 230 para bombordo.

 

CONN

Very Well.

OF MANOBRA

Ciente.

 

CO

All right [yes sir] ok the decision to come to flank let's not do that again [yes sir I...] alright that's not how you slow the problem.

COMTE

Bem, [Sim, Senhor] a decisão de dar toda forca, vamos evitar fazer isso de novo [Sim, Senhor...] pois não é dessa forma que você vai diminuir o problema.

 

OOD

Yes sir aye sir. Sir I I have a port aspect on this guy, he's crossing us, we need to act quickly sir.

OF QUARTO

Sim Senhor, ciente Senhor. Eu entendo que esse cara esta com aspecto de bombordo. Ele está cruzando conosco, nós temos de manobrar rápido Senhor.

 

CO

OK.

COMTE

Ciente.

 

OOD

Recommend full…left full rudder.

OF QUARTO

Recomendo todo leme… todo leme à bombordo.

 

CO

Left full rudder.

COMTE

Todo leme à bombordo.

 

OOD

Left full rudder.

OF QUARTO

Todo leme à bombordo.

 

CONN

Left full rudder.

OF MANOBRA

Todo leme à bombordo.

 

HELM

Left full rudder aye!

Timoneiro

Todo leme à bombordo, ciente!

00:52:00

CO

Hard left rudder!

COMTE

Leme à bombordo em emergência!

 

CONN

Increase your rudder hard left.

OF MANOBRA

Aumente o leme para bombordo em emergência.

 

HELM

Hard left rudder aye my rudder is left 30 degrees no new course given.

Timoneiro

Leme a bombordo em emergência, ciente. Meu leme esta à bombordo 30 graus, sem rumos a seguir.

 

CONN

Very well.

OF MANOBRA

Ciente.

 

CO

Five short! Five short let's go!

COMTE

Cinco apitos curtos! Cinco curtos, vamos lá!

 

CONN

Five short, aye.

OF MANOBRA

Cinco curtos, ciente.

 

HELM

Passing cardinal heading 180 to the left.

Timoneiro

Passando marcação 1-8-0 para bombordo.

 

CONN

Very well.

OF MANOBRA

Ciente.

 

OOD

And...uh...Captain sir I'd just like to continue [inaudible] on this course.

OF QUARTO

E…Uhhh… Comandante, Senhor eu gostaria de continuar [inaudivel] nesse rumo.

 

CO

Alright, steady as she goes.

COMTE

Tudo bem, governe assim.

 

OOD

Aye, sir.

 

Ciente, Senhor.

 

CONN

Steady as she goes.

OF MANOBRA

Governe assim.

00:52:30

HELM

She goes 170. Conning officer my rudder is right 15 degrees coming to course 170.

Timoneiro

Governe assim, rumo 1-7-0. OF MAN, meu leme está à boreste 15 graus, rumo 170 a caminho.

00:52:45

CO

All engines ahead flank.

COMTE

Máquinas adiante em emergência.

 

HELM

All engines ahead flank, aye.

Timoneiro

Máquinas adiante em emergência, ciente.

 

CONN

All engines ahead flank [from bridgewing phone]

OF MANOBRA

Máquinas adiante em emergência [do telefone da asa].

 

OOD

All engines ahead flank! Go! Punch it! Flank, let's go!

OF QUARTO

Máquinas adiante em emergência! Vamos, vamos! Emergência, vamos lá!

00:52:55

HELM

All engines ahead flank, sir.

 

Máquinas adiante em emergência, Senhor.

00:53:00

CO

Five short! [from bridge wing]

COMTE

Cinco curtos [do lais do passadiço]

 

OOD

Five short!

OF QUARTO

Cinco curtos!

 

HELM

Five short, aye.

Timoneiro

Cinco curtos, ciente.

00:53:10

CO

Hey! Left full rudder!

COMTE

Ei, todo leme à bombordo!

 

HELM

Left full rudder, aye!

Timoneiro

Todo leme à bombordo, ciente.

 

UNKN

Brace yourselves!

DESCONHECIDO

Segurem-se!

00:53:15

UNKN

Brace for shock!

DESCONHECIDO

Preparar para colisão!

00:53:20

UNKN

Oh God!

DESCONHECIDO

Meu Deus!

 

UNKN

You alright?

DESCONHECIDO

Você está bem?

 

UNKN

Sound the collision!

DESCONHECIDO

Soar alarme de colisão!

 

OOD

BM1... [inaudible]…is everyone alright?

OF QUARTO

Contra-Mestre [inaudível]… todo mundo está bem?

00:53:35

CO

All engines stop!

COMTE

Parar máquinas!

 

OOD

All engines stop.

OF QUARTO

Parar máquinas!

 

HELM

All engines stop, aye!

Timoneiro

Parar máquinas, ciente.

00:53:40

HELM

All stop.

Timoneiro

Máquinas paradas.

 

OOD

All engines stop!

OF QUARTO

Parar máquinas!

 

HELM

All engines stop, aye!

Timoneiro

Parar máquinas, ciente.

00:53:40

HELM

All stop.

Timoneiro

Máquinas paradas.

00:53:50

OOD

TAO, we've been hit port side. General Quarters.

OF QUARTO

Avaliador, fomos atingidos por bombordo. Postos de combate.

 

BM

General Quarters, aye.

CONTRA-MESTRE

Guarnecer Postos de Combate, ciente.

                                                     

 
ÁUDIO ORIGINAL


Referências:

BENTO, Carlos Norberto Stumpf. Navegação Integrada. Claudio Ventura Comunicação, Niterói, 2013. 200p. (www.e-nav.net).

 BRASIL, Marinha do Brasil. RIPEAM-72: Convenção sobre o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamento no Mar.(Tradução do COLREGs-72). Diretoria de Portos e Costas, Rio de Janeiro, 2011. 102p.

DEFENSE NEWS - Bridge audio from USS Porter’s Aug. 12 collision. Disponível em: <http://www.defensenews.com/VideoNetwork/2372083607001/Bridge-audio-from-USS-Porter-s-Aug-12-collision>

SWIFT, A.J Captain; BAILEY, T.J Captain. Bridge Management : A Practical Guide. 2.ed. England: The Nautical Institute, 2004. 111p.